The Project Gutenberg eBook of As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1882-06/07)

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Title: As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1882-06/07)

Editor: Eça de Queirós

Ramalho Ortigão

Release date: October 6, 2004 [eBook #13630]
Most recently updated: December 18, 2020

Language: Portuguese

Credits: Produced by Cláudia Ribeiro, Larry Bergey and the Online Distributed
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Nacional de Lisboa.

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK AS FARPAS: CHRONICA MENSAL DA POLITICA, DAS LETRAS E DOS COSTUMES (1882-06/07) ***


AS FARPAS

EÇA DE QUEIROZ—RAMALHO ORTIGÃO

Chronica Mensal

DA POLITICA DAS LETRAS E DOS COSTUMES

QUARTA SERIE N.º 1

JUNHO A JULHO 1882


Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição de poder, da escravidão dos partidos da veneração da rotina, do pedantismo das grandes personagens, das mystificações da politica, do fanatismo dos reformadores, da superstição d'este grande universo, e da adoração de mim mesmo.

P.J. PROUDHON


SUMMARIO

A patria portuguesa e os quatro milhões d'egoismos de que ella consta—Presente estado das ideias—A religião—A politica—A moral—A arte—Sentido historico do centenario de Camões, sua influencia e seus resultados—Dois annos depois—A celebração do centenario do Marquez de Pombal considerada como symptoma psychologico—Do estadista em geral e do Marquez em particular—Addusem-se razões e testemunhos insuspeitos para o fim de provar que o estadista é um agente secundario entre os acceleradores do progresso, e que o Marquez de Pombal é um individuo secundario na classe dos estadistas—Buckle, Guizot, Bastiat, Begehot, Herbert Spencer, Wechniakoff, Auguste Comte, Michel Chevalier, e outros—Demonstra-se que o Marquez de Pombal exprime a negação de tudo aquillo que a liberdade affirma e que a democracia proclama—Coerção da agricultura, coerção da industria, coerção do commercio, coerção dos direitos civis, coerção do pensamento—Arruamento geral de todas as actividades nacionais pelo systema quadrangular da reedificação da Baixa.—Secularisação do jesuitismo na pessôa do mesmo Marquez—A estatua de Sebastião e o monumento do Terreiro do Paço—Parallelo do cavallo e do cavalleiro—Pede-se o esquecimento para um e uma charrua para o outro.


Asociedade portugueza n'este derradeiro quarteirão do seculo pode em rigor definir-se do seguinte modo:—Ajuntamento fortuito de quatro milhões d'egoismos explorando-se mutuamente e aborrecendo-se em commum.

Chamar patria á porção de territorio em que uma tal aggregação se encontra seria abusar reprehensivelmente do direito que cada um tem de ser metaphorico. O espaço circumscripto pelo cordão aduaneiro, dentro do qual sujeitos acompanhados das suas chapelleiras e dos seus embrulhos ou tomaram já assento ou furam aos cotovelões uns pelo meio dos outros para arranjar logar nas bancadas, pode-se chamar um omnibus—e é exactamente o que é—mas não se pode chamar uma patria. A patria não é o sitio em que nos colloca o acaso do nascimento, á mão direita ou á mão esquerda de um guarda da alfandega, mas sim o conjunto humano a que nos liga solidariamente a convicção de um pensamento e de um destino commum.

Já um sabio o disse: Ubi veritas ibi patria. A patria não é o solo, é a ideia.


Para que haja uma patria portugueza é preciso que exista uma ideia portugueza, vinculo da cohesão intellectual e da cohesão moral que constitue a nacionalidade de um povo.

Sabem dizer-nos se viram para ahi esta ideia?...

Nós temol-a procurado de aventura em aventura, de jornada em jornada, n'uma peregrinação de vinte annos atravez d'esta sociedade, como Ulysses, vagabundo atravez da Odyssea, em busca, do fumosinho tenue e amigo que adeje no horisonte por cima da primeira cabana d'Ithaca.

As manifestações culminantes da mentalidade collectiva de um povo são: a Religião, a Politica, a Moral, a Arte. Vejamos rapidamente se em alguma d'estas espheras da nossa elaboração mental se revela a unidade de pensamento por meio da qual se affirma a existencia de uma nação.


Em religião os cidadãos portuguezes dividem-se, em uma infinidade de categorias diversas.

Temos em primeiro logar os livres pensadores, que nunca pensaram, coisa alguma sobre este ponto, apesar da liberdade com que se dotaram para esse fim.

Temos depois os indifferentes, que se subdividem pelos diversos graus de medo que têem ao Incognoscivel sempre que ha epidemias ou tremores de terra.

Seguem-se os deistas, que acceitam Deus como entidade abstracta pela qual se explica a ordem do cosmos, no qual Deus figura como maquinista, e egualmente se explicam as justiças da historia, nas quaes o mesmo Deus se manifesta sob a forma de dedo,—o bem conbecido dedo de Deus.

Veem depois os christãos, e por ultimo os catholicos. Estes separam-se uns dos outros por tantas diferenças de opiniões quantos são os individuos agremiados na Igreja. Ha os que crêem na infalibidade do papa e os que não crêem em tal infalibilidade; os que vão á missa e os que não vão á missa; os que se confessam de tudo, os que se não confessam senão de certas coisas, e os que de todo em todo se não confessam.

Uns encabeçam a divindade no Senhor dos Passos da Graça e, com as suas opas roxas e suas cabelleiras anediadas pela bandolina do culto no bairro oriental, olham com despeito para os devotos afrancesados de Nossa Senhora de La Salette, divindade de chic suspeito ás devoções da Baixa.

Os escolhidos do alto clero, que se gargarejam em suas tribulações com agua de Nossa Senhora de Lourdes, garantida verdardeiro João Maria Farina, da Gruta, sorriem de desdem pelos que ainda cuidam expurgar-se do peccado e clarificar-se para a protecção divina com a velha agua benta de mendigo de porta de Igreja, preparação de Santo Ignacio, hoje desprestigiada e choca.

Aquelles proprios que são por um mesmo e unico santo lêem entre si dissidencias acrimoniosas de detalhe.

Nós mesmos vimos ha trez annos, na volta da romagem de Nossa Senhora do Cabo, dois cirios, que vinham já de muito longe a rosnar, engalfinharem-se a final um no outro ao chegar a Cacilhas. Foi uma coisa feroz. Os clerigos cessaram interinamente de tomar pitadas para se desancarem uns aos outros com as tochas e com os cabos das lanternas, desalmadamente. A Senhora, do alto do seu andor pousado no chão, as mãos crusadas no seio, assistia ao debate com uma neutralidade fervorosa e commovedora. As sobrepellizes e as capas d'asperges, que regressavam do arraial enodoadas de vinho, de chapadas de melão e de areia vermelha, desfiavam-se pela fricção das bordoadas; nas cabeças quebradas atavam-se á pressa lenços eclesiasticos; e no theatro d'esta devoção ficou bastante sangue e muito rapé derramado pelos sacerdotes.

Devemos mencionar ainda os philosophos espiritualistas, que em religião cultivam a duvida com o mesmo ardôr de vesania com que alguns hollandezes maniacos cultivaram em tempo a tulipa.

A duvida d'estes philosophos versa sobre os diferentes feitios que pode tomar pelo infinito fora a coisa a que elles, á força de não saberem o que seja, deram o nome de eterna essência.

Enquanto a gente vae em cada manhã tratar da sua vida, esses individuos vão duvidar na solidão, ou seja nas trevas de um quarto escuro em seus domicilios, ou seja á beira do oceano, chupados e amarellos como cidras, com os olhos esbugalhados para a banda do Bugio. É até onde a ociosidade pode levar meia duzia de vadios sem mais que faser! Tivessem elles em que cuidar e não haveria perigo que a eterna essência, o increado, o absoluto e todas as mais queixas de cabeça que os affligem continuassem a remoel-os. Officio para as costas, uma enxó e um formão para as mãos, com a obrigação de ganhar oito tostões por dia para sustentar mulher e filhos, e verão os philosophos como a cruel duvida se lhes desencasqueta que é um gosto, e lhes sae pela cabeça fora para a roupa suja com a primeira camisa que suarem a puxar pelo corpo para ganhar a vida, assim como até aqui teem puxado peio juizo para dar cabo d'ella.

Em conclusão: ou seja como ponto de controversia, como motivo de briga ou como assumpto de teima, a religião em Portugal é um elemento de desunião, que não só perturba as relações sociaes mas destroe tambem muitas vezes a alliança da familia.


Passemos á politica.

N'este campo não ha, ideia propriamente nacional,—é evidente.

Perdendo a pouco e pouco a consciencia da sua tradição historica, Portugal, politicamente, não tem hoje papel na civilisação. Está desempregado. Figura no congresso das nações europeias como um paiz sem modo de vida. Perante o progresso não tem profissão. A missão que elle desempenhou na Renascença pela obra magnifica dos seus sabios, dos seus navegadores, dos seus commerciantes e dos seus artistas, as excellenles condições da sua situação geographica e a paz interior de que tem gosado emquanto a Hispanha se dilacera a si mesma nas eternas lutas intermitentes de desaggregação e de unificação das suas provincias, davam a Portugal o direito e o dever de assumir n'este seculo a preponderancia hegemonica dos estados peninsulares, a direcção espiritual da civilisação iberica. Em vez d'isso Portugal descansa desde o seculo XVI sobre os monumentos immortaes da sua passada energia e acha-se no movimento moderno da raça latina como uma nacionalidade com licença illimitada para tomar ares. Os seus filhos mais intelligenles e mais fortes, uns perseguidos, outros despresados, abandonaram-o aos reis, aos estadistas, aos padres, aos persevejos, ás moscas, e foram uns para os Paizes Baixos fundar e enriquecer a Hollanda e botar á luz Spinosa; outros foram para a America Austral fundar, agricultar e enriquecer o Brazil. O resto é o que ahi está ha dusentos annos sentado ao sol n'uma ponta de banco do mappa-mundi, a cabecear, a coçar os joelhos e a ouvir ranger o calabre á nora da coisa publica, puxada pelo governo, velho boi, d'olhos tapados, afeito ao cerco peguinhado do poço sem bica, tornando a deitar para baixo a agua que traz para cima, e não sabendo o proprio governo, nem sabendo ninguem por que ninguem se importa com isso, se é já o pau da nora que empurra de traz o animal ou se é ainda o animal que tira para deante o pau da nora.

Os differentes partidos que ha muitos annos se succedcm no exercicio do poder teem por chefes dois ou tres individuos, cujas personalidades, absolutamente destituidas de ideias correlativas ou concomitantes, representam as duas ou trez phases por que successivamente vae passando e repassando em circulo sobre o mesmo carreiro a rotação governativa.

Os personagens alludidos teem as intenções mais puras e mais honestas d'este mundo. Ter outras, deshonestas e impuras, dar-lhes-hia massada, e para ahi é que elles não vão.

Diz-se tambem que são todos mais ou menos fortes n'essa arte, velha e atrasada, que se chama a eloquencia e que tem por objecto desfaser pela exageração artificial das palavras a justa proporção das coisas.

São ainda—affirma-se geralmente—habeis parlamentares, o que quer dizer que possuem o talento de dominar as assembleias por meio de transigencias reciprocas e de concessões mutuas, rasoirando os parlamentos pelo nivel de uma mediocridade discreta, tão ôcca como estéril.

Por baixo d'essas virtudes, que reconhecemos e veneramos, os homens que ha vinte annos se revezam no governo carecem das ideias geraes de que procede na sciencia o ponto de vista governativo. As assembleias das duas camaras, revezando-se ora para a direita ora para a esquerda, dão ou retiram a maioria dos votos a cada um d'aquelles senhores, consagrando-se exclusivamente a defendel-os ou a impugnal-os, sem portanto sahirem nunca da orbita dos principios que elles representam, principios a que não correspondem systemas diversos c que se distinguem apenas uns dos outros pelos signaes physionomicos dos estadistas que os teem no ventre, podendo-se dividir assim: principios governativos calvos, principios governativos d'olhos tortos e principios governativos de cabellos tingidos.

Nestes esforços successivos das grandes massas intelligentes da nação vemos dessorarem-se gerações e gerações consecutivas de deputados, fortes temperamentos alguns, solidos provincianos de boa fé, que de trez em trez annos o parlamento recebe vivos e honrados do interior das provincias para trez annos depois lh'os devolver aniquilados para toda a especie d'iniciativa, corrompidos pelo habito de serem mandados, castrados na dignidade pela disciplina imposta pelos seus chefes, podres no caracter pela fermentação da intriga, indelevelmente marcados para toda a vida, pelo ferrete official, com uma pelintrice austera e miseravel, na figura, com uma côdea veneranda de solemnidade prudhommesca, estupida e impenetravel, no cerebro.

É pela mais justa e pela mais completa comprehensão do seu destino social que tanto os individuos como os povos se disciplinam, se fortalecem e se aperfeiçoam. Em Portugal a incapacidade governativa produsiu, primeiro que tudo, este resultado funesto: fez perder ao paiz a noção historica do seu destino, cortou o fio da tradição nacional, lançando o espirito publico n'uma existencia d'accaso como a das tribus bohemias. Depois o predominio da incompetencia scientifica na direcção dos negocios dissolveu a pouco e pouco a liga que deveria estreitar a convergencia de todas as actividades para um fim commum, e pela separação dos interesses operou a separação das energias.

É assim que em pleno seculo XIX, quando está exhuberantemente demonstrado que todos os factos do universo, assim na ordem physica como na ordem social, se encadeiam uns nos outros por leis imprescriptiveis de contiguidade e de correlação, nós vemos em Portugal exercer-se a acção do poder no estudo dos phenomenos tratando-os isoladamente, n'um ponto de vista fetichista, de preto botocudo, como se cada um d'esses phenomenos, regido por uma lei especial e divina, fosse a causa e o effeito de si proprio.

Com mil exemplos se podia comprovar a affirmação que fazemos. Mas basta-nos um qualquer, tirado ao accaso do monte, para pôr essa affirmação em evidencia de facto.

Veja-se como em cada legislatura se propõe e se discute uma das poucas questões graves de que o parlamento ainda se ocupa. Referimo-nos á coisa a que, no calão official em que tem degenerado a lingua patria, se chama—a questão da fazenda.

Reunidas as camaras e aberto perante ellas o orçamento do Estado, começa-se invariavelmente por constatar, n'um tremolo elegiaco de symphonia funebre, que continua a existir o deficit. Cada um dos tres governos a quem a corôa alternadamente adjudica a mamadeira do systema encarrega-se de explicar aos tachigraphos essa occorrencia—aliás desagradavel, cumpre dizel-o—mas de que elle, governo em exercicio, não tem a culpa. A responsabilidade cabe ao governo transacto, bem conhecido pelos seus esbanjamentos e pela sua incuria.

Para cada um d'esses tres governos sucessivamente encarregados de trazerem o deficit ao regaço da representação nacional, o governo que immediatamente o precedeu n'esse mesmo encargo é o ultimo dos imbecis.

Tal é o conceito formidavel em que cada um dos referidos tres governos tem os outros dois!

A corôa pela sua parte—e é este o mais augusto do todos os seus privilegios—é successivamente da opinião de todos os tres ministerios; e depois de haver retirado, com sincero nojo, a sua confiança aos imbecis do grupo n.º 1, n.º 2 e n.º 3, a corôa torna a restituir a citada confiança, com uma effusão de jubilo tão sincero como o nojo anterior, a cada um dos grupos de imbecis já referidos mas collocados chronologicamente em sentido inverso d'aquelle em que estavam, ou sejam, por sua ordem, os imbecis n.º 3, n.º 2 e n.º 1.

Trocadas as descomposturas preliminares sobre a questão da fazenda, decide-se que é indispensavel, ainda mais uma vez, recorrer ao credito, e faz-se um novo emprestimo. No anno seguinte averigua-se por calculos cheios de engenho arithmetico que para pagar os encargos do emprestimo do anno anterior não ha outro remedio senão recorrer ainda mais uma vez ao paiz, e cria-se um novo imposto.

Fazem-se emprestimos para supprir o imposto, criam-se impostos para pagar os juros dos emprestimos, tornam-se a fazer emprestimos para atalhar os desvios do imposto para o pagamento dos juros, e n'este interessante circulo vicioso, mas ingenuo, o deficit—por uma extranha birra, admissivel n'um ser teimoso, mas inexplicavel n'um mero saldo negativo, em uma não existencia,—augmenta sempre atravez das contribuições intermittentes com que se destinam a extinguil-o já o emprestimo contrahido, já o imposto cobrado.

Assim como os alforges dos antigos pobres das feiras e das extinctas ordens mendicantes, o deficit tem dois sacos, um para deante outro para traz, ambos destinados a receber o vacuo. N'um dos sacos mette-se a divida fluctuante, no outro mette-se a divida consolidada. De quando em quando ha um relampago de jubilo, porque parece por um momento que o alforge do deficit está vasio, isto é, que está sem vacuo dentro: é a divida, que se achava em estado de fluctuação no saco da frente, que passou no estado de consolidação para o saco de traz.

A alegria fugaz mas intensa que provem da illusão d'esta gigajoga vale o dinheiro que custa, mas custa sempre alguma coisa, porque de todas as vezes que elles mexem na divida, seja para o que fôr, mesmo para a mudar de saco, ella cresce.

Pela parte que lhe respeita o paiz espera. O quê? O momento em que pela boa razão de não haver mais coisa que se collecte, porque estará, collectado tudo, deixe de haver quem empreste por não haver mais quem pague.

No emtanto o problema de augmentar a riqueza—unico meio de prover aos encargos—é considerado como absolutamente extranho á questão da fazenda. E todavia nem toda a gente ignora que a riqueza não augmenta senão pelo desenvolvimento progressivo do trabalho e que este se acha ligado aos progressos da industria.

Ora emquanto á industria ... Mas este novo ponto pode ficar para outra vez. O feliz encyclopedismo das inaptidões do estado proporciona-nos a facilidade de poder comprovar a sua incapacidade com um só facto qualquer, demonstrando que no paiz coliocado sob o patrocinio de um tal governo, não pode dar-se senão uma especie de cohesão politica:—a liga dos governados para o despreso convicto dos que governam.


Na moral estamos como na religião. Cada um tem a sua, feita á fórma do seu pé como as botas por medida, com a concavidade de uma cupola moldada á protuberancia de cada calo.

Ha em primeiro logar as duas grandes circumscripçõcs—da moral publica e da moral privada, inteiramente diversas uma da outra. D'ahi a distincção casuistica entre a honestidade politica e a honestidade pessoal. Em virtude d'essa distincção o mesmo individuo pode, ser cumulativamente o mais honrado dos cavalheiros e o mais abalisado dos velhacos. Na politica ha carta branca para tudo: para mentir, para intrigar, para caluniar, para trahir, para furtar. No terreno politico o sujeito pode ser refalsado, impostor, venal, infiel, servil, covarde. Todos os vicios e todas as abjecções se acobertam com esta virtude absolutamente latitudinaria—a fidelidade ao partido. Está assentado e decidido para todos os effeitos que as nodoas da vida publica não distingem sobre o caracter pessoal. O cavalheiro que pela manhã leu nos jornaes, ou ouviu nas camaras, sem as combater e sem as refutar, as ultimas injurias que podem ferir o homem no que elle deve ter de mais caro no seu caracter ou no seu coração, na sua familia, na sua honra, na sua probidade, no seu pudor, no seu brio, vae á noite jantar regosijado e tranquillo na mais santa paz da consciencia no aconchego immaculado da familia, na estima inalteravel da amisade; e com a gravidade austera, convicta e bondosa, de um patriarcha, estende a mão suja das suspeitas mais torpes aos seus amigos, que lh'a apertam, e dá a beijar á sua filha, risonho e calmo, a face esbofeteada pelas accusações mais vergonhosas.

Um dos principaes caracteriscos da integridade moral de uma pessoa está no accordo das ideias com as palavras e das palavras com as obras. Na intriga constitucional cujo vicio congenito é a pusilanimidade e a hypocrisia, esse accordo é uma chimera. No parlamento portuguez ninguem diz inteiramente, o que pensa, qualquer que seja a questão de que se trate. Os negocios om discussão são debatidos por dois aspectos radicalmente diversos, na sala e nos corredores da camara. Cá fóra diz-se a verdade. Lá dentro faz-se o discurso, o que é uma coisa inteiramente differente e ás vezes opposta. A eloquencia parlamentar é a instituição official da ficção sob a fórma litteraria de nenia, de cantata, de sermão, de estopada ou de descompostura.

A influencia do regimen politico sobre a moralisação geral dos caracteres é profunda e fatal. A escola evolucionista tem demonstrado por meio de razões experimentaes que a faculdade a que geralmente se dá o nome de consciencia se fórma pelo desenvolvimento de duas tendencias combinadas posto que apparentemente oppostas: a tendencia egoista e a tendencia sympathica. Depois da applicação da fecunda theoria biologica de Darwin ao estudo e á renovação das sciencias sociaes ficou perfeitamente estabelecido que a moral, cujo objecto é o equilibrio entre o instincto pessoal da conservação e o instincto social da sympathia, tem por base, mais ou menos remota, mais ou menos disfarçada, o interesse.

Nota Spencer que aquelles que sempre tiveram saude são pouco compadecidos com as doenças dos outros. A piedade é a lembrança ou a imagem antecipada de um soffrimento, imagem que, produzida em nós pelo aspecto d'um soffrimento alheio, nos causa uma dôr analoga.

O interesse assim definido é effectivamente a base de todas as moraes. A propria moral do Evangelho o que é senão a mais lucrativa das transacções entre o homem e o infinito?

Em uma sociedade constituida as tendencias sympathicas estão portanto naturalmente em proporção e em harmonia com as tendencias egoistas determinadas pela constituição do meio.

Um governo ignorante, vivendo na trapaça, no favoritismo eleitoral, no compadrio, nas dependencias aviltantes do dinheiro, fazendo carreira aos mediocres humilhados, empecendo o exito no mundo official ás inflexibilidades energicas e fecundas, dissolve a moral publica porque, corrompendo os interesses legitimos da communidade, abastarda correlativamente as sympathias dos individuos.

Um momento depois, como os trez pedagogos comparecessem á real presença, enrolados á pressa nas togas do professorado, de barretes de dormir, com as competentes pennas de pato aparadas da vespera e mettidas atraz das orelhas, o rei disse-lhes:

—Esse jumento que ahi está, (e estendendo o seu dedo magnimo, com um largo gesto antigo indicava o principe, vestido de general, de esporas e chapeu armado, que bocejava encostado ao sabre de seus antepassados) esse real jumento ignora completamente os deveres mais rudimentares de um principe para com a sua princesa. E é para isto que eu tenho tido aqui á engorda durante quinze annos tres burros de tres mestres!... Ora muito bem: vou deixar-vos a sós por espaço de cinco minutos com tão repulsivo idiota. Se ao cabo de cinco minutos, contados pelo relogio, elle não estiver ao facto d'aquillo que todo o homem de barbas na cara deve saber para não vir para aqui a estas horas nanar n'uma cadeira, decapito-vos a todos trez esta noite como cação appropriada para fecundar os germens originaes da nossa inspiração artistica, trabalho de que apenas se encontram vestigios na obra de Garrett.

Depois do terramoto, que subverteu muitos monumentos d'arte preciosos para a educação esthetica do povo, a dictadura grosseiramente utilitaria do marquez de Pombal, primeiramente, e o burguezismo liró do regimen constitucional, depois, deram á producção artistica da moderna epoca liberal o caracter pelintra, ao mesmo tempo pretencioso e chato, de padre catita, de jesuita amanuensado, de sargento victorioso, caracter que distingue a arte portugueza de 1830 para cá, e que deu o stylo de banbolina de paninho, de balaustre azul e branco, de festão de murta e d'areia encarnada, a que podemos chamar na historia da decoração—o stylo furriel dos batalhões da carta.

Onde está ahi o artista em cuja obra se ache reflectida a influencia do antigo genio portuguez? Onde está o escriptor que se possa considerar o interprete legitimo do gosto, das ideias, das convicções dos sentimentos do publico?

Os escriptores contemporaneos podem-se dividir em quatro grupos. O grupo academico official, o grupo dos convulsionarios, o grupo dos insubmissos e o grupo dos domesticados.

Os escriptores do primeiro grupo são os velhos caturras coroados pelo laurel das commissões retribuidas, semsaborões emeritos acommodados pelo governo em confortaveis cadeiras de caixa, destinadas a receber para o Estado os fluxos da litteratura classica. Nunca ninguem no vasto publico pôde jamais apreciar a obra d'esses sabios, porque tudo quanto elles desassimilam em fórma de prosa passa em padiolas, circumdadas de respeito, dos prelos das typographias para o gorgulho dos archivos e só depois de se ter gorgulho compenetrado por espaço de muitos annos do teor d'essas producções é que ellas chegam ás casas particulares sob a fórma de involucro de generos alimenticios, como as salchichas, ou de simples aromas culinarios, como o cravo da India e o colorau picante.

Os convulsionarios, que são os mais numerosos, denominam-se republicanos, e julgam-se auctorisados, sob esse estandarte de revolta, para se collocarem em berrata furibunda e em dessidencia enthusiasmada com tudo: com a monarchia, com a religião, com a grammatica, com os mesarios da freguezia das Chagas, com os verbos, com as hostias, com as luvas, com os breviarios, com a syntaxe, com o imposto, com o Senhor dos Passos, com o diccionario, com o codigo e com o senso commum. Nada escapa á dissencia fundamental d'estes escriptores terriveis. Estão em combate acerrimo com tudo. E com o resto estão em contradicção. São o cliché negativo do mesmo estado mental de que o governo é a estampa vista em sentido inverso. São o estado posto de cabeça para baixo a andar nas mãos em vez de andar nos pés. São o conselheiro Arrobas virado pelo avesso, e invertido, com uma concavidade concernente a cada bossa, e com uma protuberancia relativa a cada buraco da sua natureza.

Os insubmissos, desagremiados da massa, são dez ou doze solitarios apenas, que reagem ás correntes do movimento geral por meio d'algumas razões experimentaes postas em verso ou em prosa, e reduzidas a algumas paginas de poema, de romance ou d'historia.

A honesta sinceridade d'estes escriptores, geralmente confundida com um cynismo de pose, com um charlatanismo de originalidade, é antipathica ao publico, que todavia os lê com uma certa avidez, impellido pela curiosidade que atrae a multidão gulosa do anormal para os livros d'elles, assim como para as barracas de feira em que se mostram vitellas com duas cabeças, das quaes uma de papelão; e meninas gordas com seis barrigas, todas postiças.

Os domesticados representam o elemento inoffensivo e ameno das lettras a que chamaremos simplesmente burguezas para as distinguirmos por uma nuance das lettras consagradas, a que chamamos já officiaes.

Os escriptores d'esta classe acceitam docilmente tudo quanto se acha em vigor no regimen vigente para não terem o incommodo de inventar nem o desgosto de se comprometterem com as familias particulares ou com os poderes publicos por meio de novas exhibições, aliás inuteis para a marcha regular do intellecto lusitano atravez dos meandros macadamisados da Baixa.

Elles vão para as glorias da posteridade, assim como os gatos para as aventuras de telhado,—pelo cheiro uns dos outros. Quando lhes não fareja outro que tivesse passado primeiro, hesitam em sua marcha, tremem-lhes as pernas, e acocoram.

Teem convicções profundas ácerca de tudo aquillo de que estavam profundamente convencidos os seus maiores, e a sua vocação, irresistivel e indomavel, é para fazer tudo o que já está feito.

Em religião são catholicos apostolicos romanos; em politica são monarchicos liberaes; em philosophia são ecleticos da escola do grande Cousin; em litteratura são pelos modelos classicos modificados pelo estro dos grandes mestres pacatos da geração moderna, Mendes Leal, Thomaz Ribeiro, Possydonio da Silva e Brito Aranha; em toilette são pelo afamado Keil; em theatro pela grande Emilia das Neves; e em culinaria pela lampreia d'ovos de fio com cidrão.

Teem ás vezes graça, mas sempre fina, de luva branca, propria de cavalheiro culto, com uso de sala, dentro do campo da civilidade e nos limites da carta. Ha no vocabulario innumeras palavras, aliás perfeitamente boas e honradas, que elles morreriam mil vezes antes que ousassem escrevel-as. Por exemplo: Com relação ao logar em que a hypocrisia costuma receber os pontapés que o bom senso lhe applica, nenhum d'esses escriptores domesticados diria com simplicidade casta—o trazeiro. Porquê? Porque, pela muita pratica de salão que elles teem, sabem perfeitamente que as «madamas», ao ouvirem um tal vocabulo, immediatamente se retiram fugazes das assembleias tirando por conclusão do emprego d'esse substantivo masculino que o cavalheiro é cynico.

Em compensação ha outros termos—os termos proprios de sociedade, que elles nunca empregam sem os ampliarem por meio de adminiculos decorativos. Quando escrevem natal, acrescentam sempre—do Redemptor, e para cabeças dizem as louras cabeças, sempre que ellas sejam de creança; sendo de vitella, ainda que egualmente louras, retiram-lhes o adjectivo para o não sevandijarem com os contactos incivis do gado vacum.

O publico derrete de justo enthusiasmo por estes escriptores mansos, que, á similhança dos elephantes ensinados, estendem a tromba para o regaço das familias, em procura do biscoito caseiro com que a gratidão humana folga sempre de remunerar os carinhos dos pachidermes doceis.

Os nomes d'elles nunca se imprimem senão enrabichados a um epitheto obsequioso: o sympathico, o festejado, o modesto, o cordato, o bom. Apesar do quê, pouca gente os lê, por que esses bons rapazes de profissão, modestos por modo de vida, para o fim de evitarem o conflicto de opiniões contrarias, embiocam-se frequentemente de mais n'um genero de litteratura abstracta ou de litteratura retrospectiva, que é a mais anodina, a mais sôrna, a mais bestificante coisa por meio da qual um escriptor pode actuar sobre o somno dos seus contemporaneos.

Se são profundas e insanaveis as nossas dissidencias religiosas, e as nossas dissidencias politicas, são ainda mais insanaveis e mais profundas as nossas dissidencias estheticas.

Estamos tão separados uns dos outros pelas nossas convicções e pelas nossas crenças como estamos separados pelos nossos gostos. Os mesmos artistas, os nossos poetas, os nossos musicos, os nossos pintores detestam-se reciprocamente por odios figadaes, de folhetim e de escola. Estes odios, mal reprimidos nas conveniencias mutuas da camaradagem, rebentam de momento a momento, periodicamente, em brigas renhedissimas, que são um dos mais decisivos symptomas da decadencia e da dissolução do meio intellectual. Temos d'anno em anno como outras tantas vegetações do charco a questão dos poetas, a questão aos jornalistas, a questão dos pintores, a questão dos musicos.

Quando alguma d'essas questões se faz esperar no tempo dado á sua periodicidade, o burguez em espectativa exclama;—A canalha d'esta vez ainda se não pegou; é que está mais cara a vinhaça!


De cima abaixo, como vêem,—na religião, na politica, na moral, na arte—esphacelamento geral. For qualquer lado que se lhe pegue, a sociedade portugueza deixa um pedaço na mão que lhe loca. Tudo se desgruda, tudo se esbandalha no aggregado portuguez a que falta a cohesão da ideia portugueza.

N'esta superfície sociai, inconsistente, mole, despolida, em que nem um só traço nitido adhere, só as nodoas se embebem, alastram e aprofundam como gotas d'oleo n'um papel passento.

No espirito publico, inerte e extagnado como agua apodrecida no fundo de um poço, cada immoralidade que cae dentro abre circulos concentricos de vibrações mephiticas que se alargam do ponto ferido até á circumferencía do repositório.

De cada vez que o Terreiro do Paço annuncia que toma de aluguel mais uma consciencia, o paiz todo, até á raia, põe escriptos.


Foi em face da situação cujas linhas mais proeminentes acabamos de esboçar que alguns homens de extranha boa fé se lembraram de promover ha dois annos a celebração nacional do centenario de Luiz de Camões.—E'a prova do espelho posto á bocca do moribundo para o fim de vereficar se elle ainda respira ou não—disseram então esses homens ingenuos. E, sem receio do terrivel sentido ironico que se poderia ligar ás suas palavras antigas, elles tomaram arrojadamente esta divisa:—Vereis amor da patria não movido de premio vil.

Para se julgar imparcialmente da acção das Farpas nos suceessos que narramos, é conveniente recordar uma pequena particularidade: O individuo que propoz, redigiu, explicou e defendeu perante a assembleia dos escriptores de Lisboa o programma do cortejo civico do jubileu camoneano, tal como elle se realisou depois de officialmente amputado, no dia 10 de junho de 1880, foi precisamente o mesmo bohemio que escreve eslas linhas.

Este simples detalhe absolutamente insignificante e inutil á historia do centenario, é importante para a historia das Farpas. Por isso ellas, ainda que immodestamente, o registam.

Foi essa a primeira vez—será provavelmente a ultima—que a redacção d'estes pequenos livros exorbitou da esphera especulativa da critica para a esphera da acção, levando directamente á rua uma ideia.

Se algum dia a moralidade das Farpas houver de ser julgada na opinião, este facto será fundamental no processo, por que é pelo accordo ou pelo desaccordo entre as ideias litterarias e os actos publicos de um escriptor que este deve ser definido para a absolvição ou para o desprezo dos seus similhantes.

As Farpas produziam gracejos periodicos desde o mez de maio de 1871. Nove annos de ironia persistente prostram de tristeza o temperamento mais solido. Rir de tudo ou de quasi tudo aquillo que todos os outros respeitam e veneram é fazer da alegria um exilio e da gargalhada um carcere.

Não ser de nenhuma seita e de nenhum partido, de nenhum club, de nenhum gremio, de nenhum botequim e de nenhum estanco, não ter escola, nem irmandade, nem roda, nem correligionarios, nem companheiros, nem mestres, nem discipulos, nem adherentes, nem sequazes, nem amigos, é possuir a liberdade, é ter por amante a rude musa aux fortes mamelles et aux durs appas, cujo beijo clandestino e ardente põe no coração a marca dos fortes mas requeima nos beiços o riso dos engraçados.

Alem da grande e amada tristeza, que já S. Paulo lastimava,—a tristeza de ser só,—na alma das Farpas havia ainda, a melancolia da descrença sobre a efficacia dos seus meios artisticos, empregados para pôr verdades em evidencia.

Onde ha uma corporação que se intitula União e capricho, onde ha outra que se chama a Incrivel Almadense, onde ha Os prussianos do Seixal e a A'vante incrivel canecense, onde existe a Academia dos Fenians e a sociedade de soccorros denominada Parturiente funebre familiar, onde um collegio de educação põe na taboleta Novo methodo intuitivo, onde um jornal de noticias toma o titulo de Santo Antonio de Lisboa, onde uma camara municipal propõe a substituição do nome de Aldeia Galega pelo de Linda Aurora do Tejo, onde uma loja de bebidas, alliando á beberoca barata o mais illustre nome da poesia contemporanea, se intitula A Casa Garrett, onde todas estas coisas se dão, assim como se dá a um homem o titulo de Visconde do Marmeleiro, sem espanto, sem estranhesa, sem sobresalto, o povo perdeu a noção do ridiculo, e não ha já ironia que lhe faça mossa. As agudezas da arte não o penetram. É preciso uma broca.

As Farpas necessitavam de descançar movendo-se, vindo á praça publica, indagando se havia para ellas um logar entre a multidão, mostrando-se uma vez participantes no movimento do seu tempo.

Quando a commissão dos escriptores reunida para celebrar o centenario, publicou o programma que nos encarregou de fazer, a cidade inteira riu durante trez dias com trez noites.

—É a cerração da velha ou é o enterro do bacalhau?—perguntava-se aos chás de familia, nas casas particulares, nos botequins, nos paços dos nossos reis e nas estalagens.

A nação inteira, congrassada no preito de uma ideia commum, representada n'uma enorme procissão civica, com os andores dos santos substituidos pelos symbolos e pelos tropheus do trabalho e da intelligencia do homem; reunidas pelo abraço da solidariedade patriotica todas as classes sociaes, que nunca até esse dia se haviam encontrado juntas em torno do mesmo interesse commum e da mesma sympathia reciproca; os estandartes de todas as profissões e os pendões de todos os partidos, os mais radicalmente oppostos e adversos, baixando-se juntos pelo mesmo impulso perante a honra e a gloria da patria; o rei á frente entre os socialistas mais intransigentes e entre os republicanos mais vermelhos, os cortezões e os officiaes d'officio, os sabios e os cavadores d'enchada, os juizes com as suas becas, os generaes com os seus uniformes, os doutores com os seus capellos, os campinos com os seus cavallos á redea, os pescadores, de pernas nuas e pés descalsos com uma vela em triumpho, os pastores, de tamancos com calções de pelle de cabra, abordoados aos cajados, os soldados com as bandeiras e as espingardas coroadas d'oliveira, os cidadãos, todos emfim, fraternisando n'um sentimento e n'uma ideia, era effectivamente o espectaculo mais proprio para fazer cocegas debaixo dos braças á nação e para desengonsar pela gargalhada as mandibulas do publico.

Apesar d'isso porem o programma, depois de devidamente modificado pelo governo, como o pedia o decoro da corôa e a dignidade do exercito, cumpriu-se, e a procissão civica não foi inteiramente o enterro do bacalhau, como se predizia: foi apenas o enterro da monarchia.

Nenhum outro facto a não ser a apotheose de Luiz de Camões, seria possivel invocar como tregoa das divergencias que nos desunem, para cohesão social do espirito portuguez.

Em nenhuma outra, litteratura existe um poeta cuja personalidade se ache como a de Camões tão profundamente e tão indissoluvelmente ligada ao genio, á historia e ao destino do seu paiz. Os Luziadas são a patria portugueza affirmada na forma indestructivel e sagrada da arte, são a nacionalidade de um povo manifesta e comprovada por todos os seus direitos á vida historica, direitos immortalisados pela uncção de uma poesia eterna.

A celebração solemne do centenario de um tal artista podia ser para a sociedade portugueza o que a leitura dos Luziadas foi para os grandes cidadãos nas crises de decadencia nacional,—um estimulo supremo de energia e de revivescencia patriotica.

Repellindo com uma bossalidade grosseira, por meio de uma estupidez verdadeiramente cornea, esta occasião unica de revincular a tradição historica da alliança do rei com o povo, o governo monarchico lavrou o documento mais formal da sua incompetencia organica para continuar a dirigir os destinos do paiz. Este simples facto demonstra do modo mais evidente que as fontes do systema representativo que presentemente nos rege estão profundamente viciadas e insanavelmente corrompidas.

Um ministerio que procede de tal forma, em opposição radical com o espirito da nação, e que depois disso continua a manter-se no poder com o beneplacito da camara, constitue a prova irrefutavel de que a soberania nacional é uma pura farça dentro de tal regimen, que a delegação dos poderes é uma mentira e que o chamado governo constitucional é uma fraude torpe, uma desfarçada usurpação hypocrita e cobarde.

Ha poucos dias ainda um deputado proferiu em pleno parlamento a seguinte pbrase:

A camara aguarda as determinações do governo. Este eloquente e arrojado tribuno do povo fallou bem. Multa in paucis. Toda a philosophia da representação nacional portugueza no presente momento historico se encerra n'essa synthese sublime e immorredoura:—«A camara aguarda as determinações do governo.»

A subserviencia do soberano ao dominio de espiritos tão garantidamente nulos e tão perfeitamente chatos como os que o aconselharam no centenario de Camões prova-nos que o cerebro da dynastia se acha tocado pelas fatalidades atavicas inherentes a um organismo em torno de cuja massa encephalica gira sangue do snr D. João VI.


Das manifestações publicas a que deu origem o centenario de Camões parecia poder-se deduzir:

Primeiro—Que o systema monarchico representativo vigente, corrompido pela viciação do suffragio, deixando de representar a soberania da nação, perdera por esse facto a rasão de ser,—o que de resto elle proprio mostrava comprehender, principiando a brilhar pela ausência além do muito que já brilhava pela inanidade.

Segundo—Que o espirito do publico em Portugal estava adeante das instituições e que tinha portanto de as substituir ou de as despresar.

Terceiro—Que o principio de associação, pelo desenvolvimento enorme que attingira no decurso dos ultimos annos, teria de ser tomado por base de toda a reforma por que houvesse de passar no paiz a ordem politica assim como a ordem social e a ordem economica.


Admittidas essas hypotheses, o progresso consistiria:

Primeiro—Em minar systematicamente as instituições, approximando d'ellas subtilmente todos os reagentes que pudessem contribuir para as dissolver mais depressa: ideias, argumentos, logica, sabão e verdade.

Segundo—-Em educar o espirito publico por meio de bons livros e de bons jornaes, systematisando as ideias, coordenando as aspirações, elevando o gosto, e transformando assim a pouco e pouco a concorrencia de actividades desunidas em convergencia de forças combinadas.

Terceiro—Em confederar as corporações de todos os trabalhadores associados—-duzentos mil homens, mandando em cada anno os seus deputados a um congresso livre em que se defendessem os deveres das classes trabalhadoras, os seus direitos, os seus interesses, a sua situação perante a continuidade historica e perante a solidariedade social, o estado das suas relações economicas e moraes com a politica interior e com a politica exterior do paiz, fundamentando assim os alicerces de um novo regimen de liberdade efficiente, contraposto ao velho regimen de auctoridade inutil,—especie de iniciação pacifica e fecunda para o advento de uma verdadeira democracia, para um systema de self-governement ou de federalismo economico á Proudhon.


Que é que se tem feito no espaço de dois annos decorridos desde o centenario até hoje para o fim de encaminhar as ideias no sentido d'essas soluções?


Fundou-se a associação dos escriptores com trezentos e cincoenta associados, dos quaes trezentos e quarenta, pelo menos, não são escriptores, porque se não póde com precisão technica dar esse nome aos individuos que por meio das letras não cultivam uma sciencia, uma philosophia ou uma arte. As letras só de per si são puramente um meio. Todo o pretendido escriptor que não tem dentro um sabio, um philosopho ou um artista, não é bem um escriptor, é um escrevente, e isto ainda na hypothese de que tenha orthographia e boa lettra. Faltando-lhe esses dois predicados nem escrevente é, é um esvasiador de tinteiros em prelos e de prelos em papel de impressão, o que verdadeiramente se deve chamar um troca-tintas, apenas.

N'esta associação dos escriptores começou um socio, professor de instrucção primaria, por annunciar um curso de leitura para analphabetos. Como epigramma a si mesmos devemos confessar que é este o mais espirituoso que os litteratos reunidos teem botado aos quatro ventos do seculo.

Os snrs Consiglieri Pedroso, Adolpho Coelho e Joaquim de Vasconcellos teem feito na sociedade dos escriptores prelecções importantes sobre historia universal, sobre linguistica e sobre critica d'arte. Cremos porém que estes bellos e desinteressados serviços á sciencia tanto poderiam ser prestados por aquelles cavalheiros na sala da associção dos escriptores como na sociedade Luz e Caridade ou na de Maria Pia, Protectora dos Portuguezes,—nova coisa que os do Porto abriram agora á gargalhada do mundo e á necessidade que os protegidos sentiam n'aquella cidade de jogar a bisca juntos sob a egide d'uma mesma princeza.

Como corpo collectivo a associação dos escriptores tem evitado toda a especie de contacto com o movimento social ou com os interesses intellectuaes da classe por meio de um melindre de sensitiva e de uma pudicicia de vestal velha.

Na qualidade de corporação registrada no governo civil e com estatutos approvados pelo governo, os escriptores teem apenas produzido luminarias, dois jantares, um passeio fluvial e algumas assembleias geraes.

Em vista de tal esterilidade, os dramaturgos, bem avisados, separaram-se ultimamente da corporação e fizeram panella á parte.

Estreitados por este novo vinculo e aguilhoados em suas imaginações pela paixão ardente das artes scenicas, os escriptores dramaticos não principiaram ainda a primeira peça feita em collaboração ou separadamente, mas vão já no quarto ou quinto jantar mensal comido de sucia. Bom appetite para o resto de carreira tão briosamente encetada é o que do fundo d'alma desejamos a estes espirituosos filhos de Melpomone.


Emquanto a livros destinados a lançar alguma luz sobre o atoleiro tem havido pouco tempo para os fazer. O snr Antonio de Serpa foi o que projectou mais clarão. Este notavel estadista fez o favor de nos revelar na sua ultima obra que um ministro em Portugal não tem tempo para tratar das questões. Todo o dia de um ministro é pequeno para parlamentar e para ouvir requerentes. Ainda bem que por este lado ao menos está o negocio liquidado. O livro do snr Antonio de Serpa, que foi ministro por muitos annos não deixa o menor vislumbre de incerteza sobre esse ponto.

Ahi temos o portico da publica governação com os seus ministros dentro.—Truz truz truz!

—Quem é?

—Está em casa o governo?

—Que lhe hade querer? Se é peditorio, pode entrar; se traz broblema, s. ex.ª sahiu n'este mesmissimo instante para palacio.

Ficamos sabendo, em summa, e de uma bôa vez para sempre, que o governo se não ocupa das questões. E' inutil suggerir-lh'as, propôr-lh'as, explicar-lh'as, amenisar-lh'as, desfarçar-lh'as, impôr-lh'as, estender-lh'as na ponta de um cajado, ou mandar-lh'as a casa n'uma travessa com ramos de salsa á roda e com limão em cima. O governo o que não tem é tempo. Bem! não se lhe falla mais n'isso. O tudo é haver quem explique as coisas!

Varios jornaes com tendencias mais ou menos revolucionarias appareceram, desappareceram ou permaneceram depois que o centenario de Camões se celebrou, mas em todos esses periodicos tem feito reconhecida falta alguem que serenamente nos dê dos phenomenos do tempo presente explicações tão cabaes como aquellas em que timbra o snr Antonio de Serpa.


Resta-nos do movimento emmergente da celebração do jubileu camoneano o congresso das associações confederadas.

Para julgarmos do estado das ideias que vão ser debatidas n'esse parlamento, cuja realisação cumpre confessar que se deve principalmente á iniciativa e á tenacidade de um unico homem, o snr Theophilo Braga, para apreciarmos d'antemão a orientação mental e a systematisação de principios que as diferentes classes sociaes terão de revelar na reunião da dieta cooperativa a que nos referimos, a festa do centenario do marquez de Pombal, ultimamente celebrada, figura-se-nos ser um symptoma culminante e preciossimo.

Antes porem de examinarmos como foi comprehendida pelo publico a importancia historica do marquez de Pombal sobre a civilisação portugueza, temos de indicar a traços largos a physionomia do heroe canonisado pelo enthusiasmo popular.


O marquez de Pombal é um estadista, um governante,—o que quer dizer—a mais pequena das coisas que um homem grande pode ser.

Buckle...—pois que é bom citar auctordades extranbas sempre que se deseja adduzir opiniões desinteressadas e argumentos insuspeitos—Buckle, um dos primeiros escriptores modernos que fundou em bases positivas as leis da civilisação e do progresso, affirma, perante os factos evidentes superiores a toda a controversia, que todos os interesses da sociedade foram sempre na Inglaterra gravemente compromettidos por todas as tentativas que os legisladores fizeram para os auxiliar. Nenhuma grande reforma, quer legislativa quer executiva, foi jamais em paiz algum a obra d'aquelles que governam. Os governos constituidos não podem fazer em bem do progresso senão uma coisa: dar-lhe possibilidade. Os unicos serviços que um governo pode prestar á civilisação reduzem-se a manter a ordem, a impedir os fortes de opprimir os fracos e a tomar algumas precauções para o fim de assegurar a saude geral. Todo o governo que traspõe estes limites ultrapassa o mandato e é criminoso perante a historia.—Não somos nós que o dizemos é Bukle na sua Introducção á historia da civilisaçâo em Inglaterra.

Guizot, apesar de todo o seu doutrinarismo, confessa que é effectivamente um erro grosseiro o acreditar no poder soberano da maquina politica.

Bastiat diz: O Estado não é mais que uma grande ficção atravez da qual toda a gente se exforça por viver á custa de toda a gente.

Bagehot, o illustre critico que mais exactamente soube adaptar as leis scientificas da evolução biologica aos estudos sociaes, pensa que a liberdade «é o poder que fortifica e desenvolve, é a luz e o calor do mundo politico. Se algum cesarismo conseguiu jamais patentear alguma originalidade de espirito, proveio isso de que soube appropriar-se dos resultados obtidos pela liberdade ou em tempos passados ou em paizes visinhos. Mas ainda em taes casos essa originalidade é frágil e pouco duradoura, e desaparece sempre dentro de um breve espaço de tempo, depois de experimentada por uma ou duas gerações, exactamente no momento em que principiaria a ser necessaria.»

Herbert Spencer explica pela acção physica das martelladas sobre a bossa de uma chapa de ferro os effeitos produzidos sobre o complexo aggregado social por essa força accidental que se chama o governo. Para achatar a empola na chapa de ferro o empyrismo bate-lhe em cima com um martello: o resultado correspondente a este esforço é que a bolha recalcada para baixo cada vez incha mais para cima, e a lamina não somente se torna mais barriguda do que estava no ponto defeituoso mas contrae ainda defeitos novos e imprevistos começando a arrebitar pelas extremidades. E' como a d'este martello a acção dos governos sobre a reformação das sociedades.

Referindo-se á inutilidade dos homens que governam com relação aos destinos dos que são governados, o mesmo Herbert Spencer escreve:

«Adão Smith ao canto do seu fogão impoz ao mundo muito mais consideraveis mudanças do que qualquer primeiro ministro. Um general Thompson, que forja as armas necessarias para a guerra contra a lei dos cereaes, um Cobden e um Bright, que as aperfeiçoam e que se servem d'ellas, contribuem mais para a civilisaçãn do que qualquer porta-sceptro. O facto pode desagradar aos estadistas, mas é indiscutivel. Calculem-se todos os resultados adquiridos já pelo livre cambio, juntem-se-lhes os resultados muito maiores ainda que elle nos promette, não somente a nos, mas a todas as nações que adoptarem o nosso principio, e ver-se-ha que a revolução emprehendida por esses homens excede em grandeza tudo o que jamais fez um potentado. O snr Carlyle sabe-o bem: aquelles que preparam verdades novas e que as ensinam aos seus similhantes são em nossos dias os verdadeiros poderes, os legisladores não reconhecidos, os unicos reis. Os que se sentam nos thronos e os que compõem os gabinetes—toda a gente o sabe—são simplesmente os servos d'aquelles homens.»

Muitos outros exemplos se poderiam acrescentar aos que são referidos por Spencer.

Os mais complicados problemas sociaes, como o do augmento da riqueza, e o do augmento dos braços, são resolvidos no fundo de uma officina por simples trabalhadores.

O metallurgista Bessemer por meio da fabricação do aço dota as nações civilisadas com uma economia de dinheiro que o Scientific American calcula sobre bases precisas, somente com relação á producção do aço bruto, na quantia de noventa mil contos por anno. Tomando em conta o excesso de duração, adquirido nos artefactos pela substituição do ferro pelo aço, e devido á invenção de Bessemer, a economia realisada pela Grã Bretanha unicamente, na duração dos rails dos caminhos de ferro, eleva-se a um rendimento de quinhentos e sessenta e cinco mil contos. Qual é a medida governativa que jamais produziu um tal resultado?

Em 1781, no mesmo anno em que o marquez de Pombal exclamava: Agora é que Portugal vae á vela, Watt descobria a applicação do vapor. Decorreu apenas um seculo depois da invenção do vapor applicado ao movimento de uma arvore de rotação, e as ultimas estatiscas do snr Bresca mostramnos que, somente em França, a força productiva inventada por Watt se acha representada por um milhão e cem mil cavallos de vapor. Calculada em doze homens e meio a paridade de força de cada cavallo de vapor, temos quatorze milhões d'homens correspondentes ao milhão e cem mil cavallos. Esses vintes e oito milhões de braços d'aço, trabalhando mais do que outros tantos milhões de braços humanos, auguentam a força muscular da França, pela dadiva de um simples e modesto operario, em quantidade muito maior do que a força destruida nas guerras pelo imperador Napoleão.

O problema scientifico, n'este momento em resolução, da transmissão da força pelos conductos pneumaticos e pelos fios electricos; põe a catarata do Niagara ao serviço do trabalho universal, e segundo uma memoria do snr Siemens apresentada recentemente ao Iron and Steele Institute, só a força do Niagara é superior á de todo o carvão que hoje se queima no globo, se todo elle fosse exclusivamente empregado em produzir trabalho.

Os homens que mais reconhecida e decisiva influencia teem tido nas reformas economicas e sociaes do nosso tempo não são nunca os homens d'estado, mas sim os homens d'estudo, simples jornalistas como João Baptista Say e Carlos Dunoyer, um obscuro cirurgião como Quesnay, um modesto professor como Adão Smith.

Aquillo que se chama propriamente um governante não é mais que o resto anachronico de uma velha liturgia hoje extincta. O vulto grosseiro d'esse dictador que se chamou Sebastião José de Carvalho, levantado em triumpho como um symbolo de progresso e de liberdade, com a sua cabelleira de rabicho, com os seus autos do Tribunal da Inconfidencia e os seus cadernos da Intendencia da Policia debaixo dos braços, faz-nos o effeito de um velho monstro paleontologico, desenterrado das florestas carboniferas e reposto, com palha dentro, no meio do espanto da flora e da fauna do mundo moderno.

Que significa uma similhante festa dos filhos da liberdade ao representante do despotismo? Que sentido absurdo se pode ligar no fim do seculo XIX a esta nova e inesperada Declaração dos direitos do governo, depois que a Revolução Franceza nos fez presente a todos nós da Declaração dos direitos do homem?

Desde 1789 até hoje todos os esforços dos povos cultos teem tendido precisamente a enterrar o principio que nós resuscitamos com a apotheose solemne de um estadista. Todo o immenso trabalho da reconstituição social durante este seculo tem consistido para todos os homens livres em negar aquillo que a memoria do marquez de Pombal affirma, em eliminar a acção do estado sobre os actos dos individuos, reivindicando sobre os restos das velhas tyrannias auctoritarias todas as liberdades proclamadas pela Revolução, a liberdade de imprensa, a liberdade de cultos, a liberdade de ensino, a liberdade de associação, a liberdade de reunião, a liberdade de commercio, a liberdade de industria, a liberdade de trabalho.

A personalidade de um estadista da escola do marquez de Pombal representa a negação expressa de todas essas liberdades, representa a revivescencia do antigo despotismo monarchico, a coerção do homem sobre o homem, quando o que todos nós pedimos desde Danton para cá, em nome da dignidade da especie, rehabilitada pela sciencia na posse de si mesma, é o livre exercicio da acção do homem sobre a natureza.

Os unicos povos do globo que ainda hoje acceitam, não diremos com os regosijos de um triumpho, mas simplesmente sem discussão, sem protesto ou sem revolta, o principio da auctoridade representada pelo arbitrio de um individuo, são os selvagens; são os aschantis, cujo rei, herdeiro unico e forçado de todos os seus subditos, tem 3:333 mulheres e um numero proporcionado de filhos, com o direito de saque sobre toda a communidade; são os kafungas do Valle do Niger, onde ninguem se approxima do soberano senão com as mãos no chão e a cabeça arrastada na lama; são os abyssinios, que nascem todos escravos do rei seu dono: são os malanesios, cujo chefe tem o tratamento de Deus; são finalmente os cafres, os botocudos, os topinambas, os patangonios e os esquimaus.

Na Europa já não ha d'isso.

Com a emancipação intelectual dos governados acabou o prestigio dos governantes.

A Hispanha, a Italia, a França, a Inglaterra, a Allemanha celebram com religiosa piedade filial os centenarios dos seus poetas, dos seus artistas, dos seus philosophos, dos seus paes espirituaes, dos seus bemfeitores. Em região nenhuma do mundo arroteada pela civilisação se celebra o culto do estadista, agente ephemero de estados sociaes transitorios, especie sempre brutal se triumpha das resistencias, sempre impura se se concilia com ellas, engenho destinado a condensar poder e a segregar leis, tão passageiras como o apparelho de que procedem, e todas más sempre que não teem por objecto a revogação d'outras que as precederam.

A sciencia anthropologica confirma inteiramente o instincto popular no seu desdem pelas faculdades dos chamados homens d'estado. O snr Wechniakoff, emprehendendo recentemente n'uma obra de anthropologia psychologica a historia natural dos grandes homens, divide estes em tres grupos: os monotypicos, os polytipicos e os philosophos. No primeiro grupo entram as altas intelligencias monocordes como as dos poetas, dos pintores, dos musicos, dos engenheiros, dos astronomos, etc. O segundo grupo compõe-se dos espiritos de natureza multipla cuja actividade se exerce nos trabalhos mais variados, cujos resultados elles são todavia impotentes para coordenar em conjuncto. Pertencem a esta familia Haller, poeta, naturalista, physiologista, auctor de 576 obras e de 12:000 artigos bibliographicos; Humboldt, que aprendeu philologia aos setenta annos e publicou a ultima parte do Cosmos dos oitenta e um aos oitenta e oito annos de idade; Bernardo Palissy, Plater, Alberti. O terceiro grupo, subdividido em grupo philosophico permanente e grupo philosophico transitorio, consta na primeira parte de individuos como Auguste Comte, Leibnitz, Lagrange, e na segunda de Newton, Grove, Daniel Bernouilli, etc.

Em nenhuma d'essas categorias se comprehendem os estadistas, porque a anthropologia psychologica não acceita como grandes homens senão os creadôres da arte, da sciencia ou da philosophia.


Determinada a especie, passemos agora a examinar o individuo.

Durante o seculo XVIII—diz Michel Chevalier—vemos successivamente passar na direcção dos negocios na maior parte dos Estados, ou seja como rei ou como primeiro ministro, um reformador applicado a destruir a supremacia da nobresa e do clero, com o fundamento de que a nobresa tendia a attribuir-se uma parte das prerogativas do governo em detrimento da realesa e por vantagem propria, emquanto o clero aspirava a dirigir a sociedade ficando elle, unicamente sujeito a um soberano extrangeiro que com uma triplice corôa na cabeça se considerava o rei dos reis. N'este presupposto era como senha dada e geralmente obedecida suscitar por meios mais ou menos artificiaes, á falta d'outros mais convenientemente entendidos e mais efficazes, o desenvolvimento da agricultura, do commercio e das manufacturas, afim de augmentar a riqueza dos povos e os recursos do Estado, de que o principe dispunha arbitrariamente. Parecia util espalhar a instrucção, porque ella contribue para formar uma opinião publica que pode contrabalançar a auctoridade do clero sobre os espiritos. Quanto ao mechanismo do governo punha-se completamente de parte a liberdade. A divisa era: O estado é o principe. Todos o pensavam com quanto o não proclamassem como Luiz XIV. Esta feição geral encontra-se em graus diversos, sob formas differentes e com accessorios appropriados aos logares e ás circumstancias em varios estados durante uma ou outra parte do seculo XVIII. No norte essa expressão é brilhante na côrte do grande Frederico e da grande Catharina; no centro da Europa na côrte de José II. No sul apparece em Pombal, e, em grau menor, nos dois hispanhoes rivaes um do outro Campomanes e Florida Blanca.

D'esta exposição tão clara do systema geral de reformas governativas na Europa durante a primeira metade do seculo passado, exposição devida a uma auctoridade tão insuspeita como a do economista Michel Chevelier, deduz-se immediatamente que o talento politico do marquez de Pombal carece de originalidade.

Esta circunstancia destroe em grande parte o intuito patriotico que geralmente se lhe alttribue de pretender, n'um ponto de vista nacional, reformar e reconstituir a sociedade portugueza dissolvida por duzentos annos de despotismo monarchico e catholico. O arrojado ministro do rei D. José era apenas um reformador de segunda mão. Como revolucionario a sua carreira é de pé posto no circulo feito em torno das realezas estremecidas por todos os dictadores que se haviam seguido a Richelieu no governo das monarchias modernas.

As reformas de Pombal não são o producto puro de um talento pessoal mas sim os ultimos effeitos de uma corrente contagiosa de ideias, ao tempo d'elle quasi todas já envelhecidas e refutadas.

O que elle representa na civilisação não é a personificação de um genio mas sim o advento de um novo poder, que o enfraquecimento das raças reinantes tornava necessario, que então apparecia pela primeira vez e que Auguste Comte denominou o poder ministerial.

Este facto exprime um consideravel progresso politico, de que Pombal é a funcção. O estabelecimento do poder ministerial é a reversão, ao valor, da auctoridade até ahi adstricta ao nascimento.

Antes de assumir a dictadura em que o investiu o rei D. José, Pombal viajara, residira como embaixador na Inglaterra e na Austria, convivera com homens de espirito iniciados nas ideias da philosophia franceza, mas nem da revolução intellectual da França nem da revolução economica da Inglaterra elle comprehendeu o mechanismo. Unicamente os processos da politica austriaca, de uma meticulosidade italiana e de um rigor allemão o penetraram inteiramente.

A imperatriz Maria Thereza, que envolvida nos mais altos negocios da politica internacional europeia funda commissões de castidade para salvaguardar as esposas das infidelidades maritaes, sem que todavia isso a empeça de escrever epistolas ternas a Madame de Pompadour, amante de Luiz XV, dá bem o modelo da politica pombalina, policiando tudo no reino desde os primeiros segredos da diplomacia até aos ultimos mysterios das alcovas.

Na côrte de Vienna encontrou o marquez de Pombal, em elaboração, as ideias que pouco depois deviam constituir o programma politico do imperador José II, cuja impetuosidade de caracter Maria Thereza procurara conter em quanto viva e cujos projectos de reforma eram tão similhantes áquelles que o marquez realisou em parte como primeiro ministro na côrte de Lisboa.

Abolição da escravidão, do direito de primogenitura, dos dizimos, da caça privilegiada; reconhecimento dos judeus e dos protestantes como cidadãos; todo o cidadão considerado capaz de alcançar qualquer emprego; suppressão dos conventos inuteis transformados em hospitaes e em estabelecimentos de instrucção; desenvolvimento das universidades e das academias; protecção das pautas á industria nacional: tal é a parte do programma de José II que o ministro portuguez procurou pôr em execução no seu paiz.

Mas José II ia um pouco mais longe, e a declaração completa da sua politica ao subir ao throno, pouco mais ou menos pelo mesmo tempo em que Pombal cahia, mostra-nos que este não aprendera inteiramente a lição que as suas convivencias e os suas ligações austriacas lhe haviam ministrado.

O imperador José II declarou que reinar sobre homens livres era a sua unica paixão como rei. Pombal, preoccupara-se pouco, com a liberdade conferida aos cidadãos que governara. Esta differença fundamental entre o reformador austriaco e o reformador portuguez reflecte-se na obra de cada um por meio dos effeitos mais expressivos.

Assim, emquanto o marqucz de Pombal confere o tratamento de magestade ao tribunal da Inquisição e funda o famoso e terrivel tribunal da Inconfidencia, José II substitue a todas as jurisdições, ecclesiasticas e feudaes, tribunaes civis de varias instancias emmergentes d'um unico tribunal supremo. Emquanto Pombal funda a Real Mesa Censoria, José II transfere para os membros das academias e das universidades a censura até então exercida pelo clero. Emquanto Pombal reserva para a corôa o direito de nomear e de demitir sem mais fórma de processo todos os funccionarios da nação, José II funda a lei dos concursos. Emquanto, finalmente, Pombal manda suppliciar n'um aulo de fé, com cincoenta e tres condemnados, o pobre cretino Malagrida na idade de setenta e tres annos, José II estabelece o principio da tolerancia, conferindo a toda a aggregação religiosa de tres mil almas, de qualquer seita que sejam, o direito de edificar um templo e de subsidiar um pastor.

Nas praticas administrativas Pombal é da escola de Colbert, refutada em Inglaterra desde o meiado do seculo. O systema protector pombalino e o systema colbertista, de que elle é copia, dão em Portugal e em França resultados similhanies. Pombal que recebera da administração de D. João V um cofre em que nem havia com que pagar o enterro do rei, entrega a D. Maria I o erario com uns poucos de milhões, um exercito numeroso e uma boa esquadra. Colbert escrevia ao soberano em 1662: «Os rendimentos estavam redusidos a 21 milhões e ainda esses comidos por dois annos; hoje estão em 50 milhões. Então o rei pagava 20 milhões de juros; hoje não paga um sou.

Então o rei, dependente dos financeiros, não podia fazer despesa alguma extraordinaria; hoje, depois da compra de Dunkerque, a Europa vê-o bastante rico para comprar o que quizer. Então não havia marinha; hoje vinte e quatro naus acabam de ser construidas, etc.»

A prosperidade de um povo não póde porém ser aquilatada pelo dinheiro que o principe possue no erario á sua disposição, nem pelo numero das baionetas dos soldados ou das boccas de fogo dos navios que elle tenha á mão para fazer guerras. O Estado é um apparelho, não é uma individualidade. O Estado tem funcções e não tem mais coisa nenhuma, nem bens, nem crenças, nem opiniões.

O Estado tem obrigação restricta de ser pobre, exactamente como tem obrigação de ser atheu. Onde o Estado enriquece, a communidadc está roubada, porque se lhe extorquiu mais em imposto do que se lhe deu em serviços, e as relações dos individuos com o Estado, tendo por base a troca, não podem ter por fim o lucro do mesmo Estado, representado pelo principe, pela côrte, pela nobreza ou por qualquer outra classe privilegiada.

Quando o Estado se constitue protector torna-se objecto de uma superstição grosseira e perigosa. A fé posta na protecção do governo é uma derivação da fé no milagre. Essa fé dissolve todas as aptidões, todas as iniciativas, todas as forças de uma sociedade. Os que acreditam na acção providencial dos estadistas sobre os desenvolvimentos da riqueza, e da prosperidade dos povos perturbam tudo pela confusão dos poderes de que abdicam, delegando-os no governo. Os proletarios pedem a abolição dos direitos de importação dos cereaes e dos tecidos para terem o pão e o vestido mais barato; os cultivadores e os industriaes requerem direitos prohibitivos de concorrencia para venderem mais caro os productos da terra e os das fabricas; os operarios requerem augmento de salario; os patrões solicitam augmento de trabalho; e todo o accordo, desde que o Estado intervem, se torna impossivel entre aquelles que produzem e aquelles que consommem.

Nenhuma das industrias que o marquez de Pombal fundou pela protecção lhe pôde sobreviver na liberdade. Todas as grandes companhias de industria ou de commercio fundadas por elle desappareceram sem o menor vestigio na prosperidade ou na riqueza, publica,—a companhia do Maranhão, a de Pernambuco, a dos Vinhos do Douro, a da pesca da baleia, a da pesca do atum. Todas as fabricas que elle montou cahiram successivamente umas depois das outras. A razão é que a industria não é um artigo de importação mas sim um ramo da sciencia applicada. O unico meio de suscitar industrias e de crear commercio é introduzir sciencia e dar liberdade.

O vasto plano do marquez de Pombal tendente a uma completa e total reconstrucção social é, pela sua mesma natureza absoluta, a negação do seu talento politico. Tendo por fim condensar os esforços da progressão social, toda a politica efficaz tem necessariamente de ser tão lenta como essa progressão. O snr Oliveira Martins chama ao governo do marquez de Pombal um terramoto. Effectivamente o enorme conjuncto d'essas disposições legislativas e policiaes destinadas a refazer de um jacto uma civilisação, representam uma força tão poderosa e ao mesmo tempo tão irracional como o abalo de terra que em alguns minutos destroe uma cidade.

O snr Dubost, apreciando na Revue de Philosophie Positive as altas qualidades de Danton como homem de estado, diz que o caracter principal da sua politica consiste na necessidade que elle comprehendeu de renunciar deliberadamente a intentar a reconstrucção total da sociedade franceza, mantendo-sc energicamente em uma obra relativa, que deve consistir em permittir a elaboração dos elementos que por si mesmos hão de gradualmente produzir a reconstituição. Pombal desconhecia completamente essas leis fundamentaes da politica, que subordinam as funcções governativas á independencia do meio social, não permittindo medida alguma que a opinião não solicite, que a vontade publica não reclame.

Condorcet na sua biographia de Turgot, de quem elle foi o amigo e o collaborador, diz: «Deve-se evitar na reforma das leis: 1.º tudo quanto possa perturbar a tranquillidade publica; 2.º tudo quanto produza grandes abalos no estado de um grande numero de cidadãos; 3.º tudo quanto encontre de frente preconceitos ou usos geralmente recebidos. Algumas vezes succede que uma lei não pode produzir todo o bem que promette ou não se pode pôr em execução porque a opinião lhe é adversa; n'esses casos cumpre começar por mudar a opinião

Para o ministro do rei D. José não havia senão uma opinião—a d'lle, e o publico não era mais que uma grande massa passiva e bruta, que elle se julgava destinado a modelar sob vários aspectos mettendo-a em formas, como se faz aos pudins.

Derivando todas as liberdades da pessoa do rei, elle recalcou sempre pelo terror todas as revindicações de independencia collectiva ou pessoal. Nunca nos estados modernos da Europa o despotismo assumia um caracter mais cruel, mais sanguinario mais implacavel que o do regimen pombalino em Portugal. Proudhon diz que a tyrania está sempre na rasão directa da grandeza da massa dominada. A administração do reinado de D. José é uma excepção a esta regra. Em tão pequena familia tão grande oppressão como aquella de que a sociedade portugueza deu o espectaculo durante o ultimo quarteirão do seculo XVIII foi o espanto e o horror do mundo civilisado.

A tremenda catastrophe do terramoto lançara o panico, o horror, a confusão, o desequilibrio em todos os espiritos, em todas as relações sociaes, em todos os interesses economicos. A catastrophe nacional derivada d'essa revolução geologica prepara o advento da dominação pombalina, assim como o terror na revolução franceza prepara o advento da dominação napoleonica. Em França como em Portugal a sociedade havia perdido sob o golpe de uma desgraça esmagadora a faculdade de resistir. No meio do desfallecimento geral que por algum tempo se succedeu á violencia da crise, Pombal pretendeu reconstruir a sociedade perturbada exactamente pelo mesmo processo por que reconstruiu a cidade em ruinas: ao esquadro e á regua, como um pedreiro cabeçudo e valente, tomando a symetria pela ordem; sem respeito algum pela dignidade das ideias e dos sentimentos; sem a menor noção da elevação e da belleza moral; sem arte, sem graça, sem elegancia, sem gosto; n'uma feroz teimosia de omnipotente sapador, alinhando, razoirando, espalmando, achatando, estupidificando tudo. São os brutaes arruamentos quadrangulares da Baixa prolongados a toda a área da ordem social.

De cima a baixo, de norte a sul, de este a oeste, tudo arruado! Para ali os algibebes, para ali os professores, os bacalhoeiros, os poetas e os capellistas; para acolá os retrozeiros, os latoeiros, os artistas e os philosophos. Para os sapateiros aqui estão as formas; para os philosophos aqui estão as ideias, para os retrozeiros aqui estão as linhas; para os artistas aqui está a natureza, a sensibilidade, o temperamento e a paixão.

Elle só gisa, mede, talha, corta, almotaça, esposteja, aquartilha, taberneia, baldroca, amesinha e a apilula tudo,—o arroz, o vinho, a manteiga, o bacalhau, o briche, o oleo de ricino, o ensino publico e particular, as missas, a poesia, a architectura, a musica, a esculptura, a philosophia, a historia, a moral e a canella.

A cada um o seu regulamento e o seu arruamento, com quatro forcas e com duas mas, direitas, parallelas rectilineas, vindo todas dar á grande praça central com a besta de bronze ao meio, sustentando em cima, vestido á romana com um sceptro na mão, um pulha inepto, de bronze para pensar, de cebo para resistir.

Nos patibulos, que servem de signos geodesicos á triangulação do systema, nunca durante dez annos deixou de pernear alguem para recreio do principe e escarmento dos subditos.

Toda a reclamação, ainda a mais moderada, contra medida promulgada pelo omnipotente ministro era considerada crime de lesa-magestade e d'alta traição.

O supplicio dos Tavoras e do duque de Aveiro e o auto de fé do padre Malagrida são monstruosos de mais para que façamos d'elles argumentos de historia. A ferocidade levada a um tal requinte deixa de pertencer á critica; está fora da historia assim como está fora da humanidade: é uma reversão ao canibalismo, cujo estudo compete á psychologica pathologica.

Explica-se geralmente pela necessidade politica de abater e de humilhar a nobreza esse processo caviloso e infame, em que o ministro de D. José é ao mesmo tempo juiz e parte, e em que os réus são julgados sem defeza e sem exame de provas sob a accusação de uma tentativa de regicidio, em que hoje se sabe achar-se completamente innocente a familia Tavora; assim como estava innocente o marquez de Gouveia, exhautorado do seu titulo, officialmente infamado e encarcerado nos carceres sem ar e sem luz do forte da Junqueira desde os dezoito annos de idade até os trinta e sete; assim como estavam innocentes o marquez d'Alorna, encarcerado no mesmo forte: a marqueza d'Alorna e as suas duas filhas, presas no convento de Chellas; D. Manoel de Sousa Calhariz, avô do duque de Palmella, encarcerado na Torre do Bugio, onde morreu; e a infeliz duqueza d'Aveiro, a qual, depois de sequestrados todos os seus bens, perseguida até o seu ulliino suspiro pelo ódio do marquez de Pombal, morreu no convento do Rato, servindo a cosinha das freiras como creada de pé descalço.

Singular modo de aviltar uma classe, sagrando-a assim pelo martyrio!

Decorreram mais de cem annos sobre a carnificina canibalesca de 13 de janeiro de 1757. Povoam ainda as nossas imaginações e vivem eternamente immortalisadas pelas nossas lagrimas as doces e legendarias figuras d'esses fidalgos: a marqueza de Tavora, de uma physionomia tão elevada e tão elegiaca, alta, magra, severa, envolta na sua longa capa alvadia, assistindo no patibulo á descripção do suplicio por que vae passar a sua familia, comprimindo no silencio da dignidade toda a explosão da dôr e dobrando, sem um grito, sobre o cepo, a cabeça coroada de cabellos brancos que o carrasco fere de um golpe de machado pela nuca, fazendo-a pender por um instante segura ao busto pela pelle da garganta. O altivo e marcial marquez de Tavora, macerado e encanecido, contemplando os cadaveres da sua mulher degolada, do seu filho com os ossos esmigalhados pelo masso de ferro que um momento depois lhe ha de bater no peito, em que elle crusa os braços, deixando rolar nas faces duas grossas lagrimas mudas e tragicas, unico protesto contra o holocausto necessario para desatranvacar dos empeços de familia o caminho que conduz á alcôca da amante do seu rei. O joven José Maria de Tavora, finalmente, com vinte e um annos de idade, bello, gentil e amado, vestido de veludo preto e meias de seda côr de perola, os cabellos annellados e louros presos por um laço de fita.

E na saudade dolorosa que nos desperta esse quadro do pretendido aviltamento da aristocracia portugueza ninguem comprehende os tres plebeus creados do duque d'Aveiro, egualmente suppliciados por terem acompanhado seu amo na emboscada da Ajuda sem todavia haverem participado na aggressão ao principe.

Esses tres innocentes, João Miguel, Braz José Romeiro e Manoel Alvares Ferreira, comparecem no patibulo por ordem do juiz supremo Sebastião José de Carvalho, em camisa e calções, de pernas nuas e pés descalsos, despresiveis e grotescos, despoetisados para a legenda sentimental da morte pelo julgador egualmente plebeu que, para se extrahir d'esta miséria truanesca da simples canalha, se condecora a si mesmo com o direito de morrer com meias de seda, encorporando-se alguns dias depois com o titulo de conde d'Oeiras na mesma nobreza que pretendia aviltar e destruir.

É a isto que os apologistas de Sebastião chamam o nobre intuito democratico de elevar a plebe e de constituir a burguezia.

Mais expressivo e mais concludente que este extranho methodo de egualisar as condições sociaes, é na historia da administração pombalina o systema geral de perseguição sanguinaria a toda a manifestação de liberdade affirmada, de castigo tremendo a toda a transgressão da lei escripta. Chega a não ser preciso desobedecer, basta não gostar completamente do regimen em vigor para ser immediatamente punido por isso. Em 1756 o marquez de Pombal decreta uma gratificação de 400 mil cruzados a todo o delator d'aquelles que disserem mal do seu governo. No mesmo anno como lhe desagrade não se sabe porque, o seu collega no ministerio Diogo de Mendonça Corte Real, manda-o sahir de Lisboa dentro de tres horas e prende-o na praça de Masagão até que, cedida essa praça aos marroquinos, é transportado para as Berlengas, onde morreu esquecido e abandonado. Similhante sorte teve o successor de Diogo de Mendonça, Thomé Joaquim da Costa, que o marquez enfastiado mandou, sem culpa formada como o outro, para o castello de Leiria, onde morreu. Em 1753, como a Mesa do Bem Commum representasse humildemente em nome dos commerciantes de Lisboa contra o privilegio exclusivo do commercio do Maranhão e do Grão Pará conferido a uma companhia, encarcera no Limoeiro, sem outra forma de processo, todos os commerciantes peticionarios e o advogado João Thomaz de Negreiro, redactor da petição. Este foi degradado por oito annos para Masagão. Todos os negociantes foram deportados por mais ou menos annos. Em 1757, em consequencia da assuada popular a que deram motivo os monstruosos vexames da Companhia dos Vinhos do Alto Douro, manda ao Porto a famosa alçada que enforca vinte e um homens e cinco mulheres e condemna a degredo, a confiscação e a multa 211 pessoas de ambos os sexos. Em 1776, para o fim de castigar alguns refractarios ao serviço militar refugiados na Trafaria, manda incendiar de noite as cabanas d'essa pobre aldeia de pescadores e espera n'um cinto de bayonetas caladas os desgraçados que fogem ás chammas espavoridos e cegos.

Ninguém podia contar com a vida, nenhuma cabeça se considerava segura nos respectivos hombros. As cartas eram abertas e lidas n'uma repartição especial montada para esse fim. O tribunal da Inconfidencia e a Intendencia Geral da Policia devassavam todos os segredos. Era-se perseguido, preso, condemnado rapidamente, summariamente, sem appellação nem aggravo, por uma carta a um parente, por alguns versos, por uma palavra, por um sorriso, por uma simples suspeita. As prisões estavam cheias. No forte da Junqueira, a que verdadeiramente se pode chamar a Bastilha portugueza, morre o conde d'Obidos e o conde da Ribeira. O coronel Thomaz Luiz, accusado de haver recebido em sua casa, na provincia de Minas Geraes no Brazil, um jesuita secularisado, morre na força em Lisboa, provando-se mais tarde que nem o supposto crime de que o accusavam era verdadeiro. O diplomata Antonio Freire d'Andrade Encerrabodes, accusado de haver escripto em uma carta particular a um amigo uma phrase desagradavel para o marquez, é desterrado para a Costa d'Africa. O conde de S. Lourenço e o visconde de Villa Nova da Cerveira, unicamente por terem sido os familiares do Santo Officio encarregados por esse regio tribunal, reconhecido e auctorisado, de prenderem o intendente da policia, são sepultados o primeiro no forte da Junqueira, o segundo no castello de S. João da Foz, onde morreu. Na Junqueira estiveram ainda os tres filhos do conde d'Alvor, o letrado Francisco Xavier, mais tarde degredado para Angola; o desembargador Antonio da Costa Freire, que morreu no forte; e muitos outros.

A disciplina militar do conde de Lippe lembra as arias do general Boum, em que a cada phrase corresponde um tiro. Os famosos artigos de guerra, em que os fusilamentos apparecem com tanta frequencia, como as virgulas, seriam dignos da musica de Offenbach, se não tivessem sido na realidade um opprobrio da dignidade humana. Pelas culpas mais leves o soldado era mettido ao tornilho, carregado d'armas, amarrado nu a uma espingarda e zurzído ás varadas ou moido ás pranchadas d'espadão.

Na vida civil o mando fazia lei indiscutivel e absoluta, como na vida militar. Por occasião das famosas festas da inauguração da estatua equestre ordenou-se aos ourives e aos particulares que cedessem as suas alfaias para servir á ceia dada á custa do povo pelo senado de Lisboa, cujos amigos comeram tresentas arrobas de doce em tres dias.

Da historia geral das reformas emprehendidas pelo marquez de Pombal cumpre separar dois factos culminantes de especial importancia no progresso: a expulsão dos jesuitas e a reforma da instrucção publica.

A extincção da Companhia de Jesus foi no marquez de Pombal, assim como nos demais reformadores regalistas da sua escola e do seu tempo, o resultado de um equivoco.

Toda a gente sabe que a obediencia absoluta e cega é o fundamento da ordem instituida por Santo Ignacio de Loyola, assim como é o fundamento de todo o despotismo monarchico. O fim da Companhia de Jesus foi sempre desde a sua fundação até hoje oppôr ás ideias de livre exame, de discussão e de governo livre, a monarchia absoluta e o direito divino. O immenso e insubstituivel poder espiritual sobre o qual se fundamentava principalmente o poder temporal dos reis era o poder dos jesuitas. Sem elles as monarchias absolutas careciam de base no espirito c na consciencia dos povos. O marquez de Pombal tendo por unico intuito politico fortalecer e affirmar indestructivelmente e para todo o sempre o dominio absoluto do despotismo monarchico, errou portanto do modo mais pueril, como todos os estadistas monarchicos seus contemporaneos, minando por meio da perseguição aos jesuitas os alicerces da sua propria fundação. Nunca um espirito verdadeiramente superior e penetrante, como por exemplo o do snr de Bismarck, cahiria n'um tal desacerto.

Imaginem, um architecto que depois de haver construido um palacio de marmore sobre estacas de madeira cravadas no fundo do oceano, rematasse a sua obra serrando as pilastras que a sustinham. Foi precisamente o que fez Pombal, construindo o mais solido regimen despotico sobre os principios da obediencia e do direito divino, e tirando-lhe em seguida debaixo o jesuita, que era o sustentaculo intellectual e moral d'esses mesmos principios.

Auguste Comte, cujo alto e poderoso genio philosophico lança sempre uma tão intensa e viva luz sobre todos os problemas historicos em que põe a mão, escreve sobre a queda da Companhia de Jesus, facto que elle considera como o primeiro dos tres grandes agentes que dirigiram a crise revolucionaria do fim do seculo XVIII, as seguintes palavras: A abolição da Ordem dos Jesuitas mostrou a decrepitude de um systema destruindo pelas suas proprias mãos o unico poder susceptivel de lhe retardar a queda.

A extincção da Companhia de Jesus é certamente um dos mais fundamentaes progressos adquiridos para a liberdade e para a civilisação moderna. Attribuir porem e agradecer essa acquisição liberal ao espirito do retrogrado e ferrenho ministro do snr D. José I é cahir n'um contrasenso tão absurdo como seria agradecer a destruição de uma machina infernal ao artifice que a construia e em cujas mãos ella rebentou por um erro de fabrico.

A perfeição no modo consciente e raciocinado de eliminar do progresso a influencia jesuitica consistiria em destruir o jesuitismo mantendo pela tolerancia a independencia do jesuita. A prova manifesta de que o marquez de Pombal não tinha consciencia alguma do serviço que contra sua vontade prestou á liberdade está no facto evidente de que, em vez de atacar os principios da instituição que condemnava, ele não fez mais do que perseguir os homens que o serviam, expulsando-os do reino e sequestrando-lhes os bens, punindo-os e espoliando-os.

Os jesuitas foram-se, mas o jesuitismo ficou. Ficou encarnado e vigente na pessoa do propio marquez de Pombal, o qual deante da liberdade não é mais do que um Loyola leigo, um Santo Ignacio de casaca de seda e espadim, um pouco mais limpo talvez, mas incomparavelmente menos grande do que o antigo, com menos piolhos mas com muito mais teias de aranha na cabeça.

Expulsor dos Jesuitas, o marquez de Pombal fez do jesuitismo secularisado todo o seu programma de poder.

Santo Ignacio tinha dito: «Se me parecer que o meu superior me prescreve ordens em opposição com a minha consciencia, acreditarei n'elle e não acreditarei em mim.» Na Constituição da ordem diz-se: «Pareceu-nos em Deus nosso Senhor que nenhuma disposição pode induzir obrigação de peccado mortal ou venial, a menos que o superior em nome de Jesus Christo ou em virtude de obediencia o não ordene.» Na Medulla theologiae moralis o padre Busenhaum prescreve no tomo 4, capitulo V: Quum finis est licitus, etiam media sunt licita.

Todo o systema governativo de Pombal assenta na pratica d'esses principios definidos pela companhia. Para elle todo o meio é licito quando lhe parece licito o fim, e, substituindo a invocação eclesiastica de Nosso Senhor Jezus Christo pela formula civil de El-Rey meu amo, elle arvora a obediencia cega, irraciocinada, absolutamente bruta, em lei fundamental da nação, assim como era lei fundamental da ordem.

A tão decantada reforma da instrucção publica não é mais de que uma das formas de jesuitismo applicado ao ensino.

A instrucção primaria, cultivada sobre a cartilha de Padre Mestre Ignacio, continuou como estava subordinada á Igreja. Os mestres eram obrigados ao receber os ordenados no fim de cada mez a exhibir certidão do parocho attestando que o professor tinha ido á missa com todos os seus alumnos nos domingos e festas de guarda.

Na instrucção superior a sciencia é escrupulosamente decilitrada pelo legislador a copinho por copinho como a geropiga do saber abodegada no casco por conta do lavrador. Nem o alumno póde beber nem o mestre póde propinar senão precisamente a doze e a qualidade de licor prescriptas no regulamento d'este monopolio. Os Estatutos da Universidade, são uma especie d'Estatutos da Companhia dos Vinhos do Alto Douro adstricta á cepa torta da intelligencia.

Qual era o vicio capital do ensino jesuitico? Era a subordinação do phenomeno ao dogma, era a sujeição da observação, do exame, da experiencia e do raciocinio ao arbitrio da auctoridade imposta.

O vicio organico da instrucção pombalina é precisamente o mesmo. Em toda essa legislação do ensino publico, o professor é seguido passo a passo atravez de todas as disciplinas que tem de leccionar. Elle não póde communicar uma só noção que previamente lhe não houvesse sido suggerida pelo legislador. O mestre, segundo Pombal, é uma pura machina de moer artigos de programmas com corda dada pelo Estado para o exercicio de cada anno lectivo.

Que importa, para os resultados finaes de um tal modo de instruir, o maior ou menor numero de faculdades incluidas nas academias, o maior ou menor numero de disciplinas introduzidas nos programmas? Onde faltam os livres methodos experimentaes falta toda a especie de ordem positiva na coordenação das ideias, e diz o snr Herbert Spencer que quando não ha ordem na instrucção de um homem, quanto mais coisas elle souber tanto maior será a confusão do seu cerebro.

A instrucção de um povo não pode nunca ser aquilatada pelo numero dos bachareis formados que as ordens religiosas ou os institutos officiaes derramam em cada anno sobre a massa da população, para o fim de a explorarem pela chicana juridica ou de a embalarem pelo palavrão dogmatico ou metaphysico.

A verdadeira instrucção nacional tem por base a vulgarisação geral das ideias transmittidas pela maxima liberdade do pensamento, e tem por fim o emprego das faculdades intellectuaes de todos os cidadãos no exercicio dos seus direitos politicos e dos seus direitos civis.

Quando a instrucção publica assenta pelo contrario em um campo de doutrina arbitraria imposta por um legislador em nome de um regimen politico, de uma escola philosophica ou de uma seita religiosa, ha uma coisa muito mais util do que ministrar essa instrucção, e é não ministrar instrucção nenhuma. A falsa instrucção é um veneno inoculado no homem. A simples ignorancia, pela sua parte, é uma das grandes forças do espirito. Se não fosse a santa ignorancia, pura e convicta, que resistiu pelo bom senso ás differentes epidemias eruditas de cada seculo, a escolastica e a metaphysica teriam dado cabo da humanidade.

Concluindo pois, repetimos que o marquez de Pombal, expulsando os jesuitas e reformando os estudos, não extiguiu o jesuitismo, secularisou-o apenas, deslocando-o da ordem religiosa para a ordem civil, arrebatando-o aos padres para o encabeçar nos agiotas, nos desembargadores, nos generaes e nos doutores de capello.

O jesuita é perfeitamente odioso e repulsivo pela acção sinistra que durante tresentos annos tem exercido sobre a immobilisação da intelligencia, sobre a depressão da dignidade do homem; mas o jesuita é pelo menos coherente e logico comsigo mesmo; sabe nitidamente o que quer, tem perfeitamente correlacionados os seus meios com os seus fins e vae ao seu destino preconcebido com uma exactidão geometrica, com uma firmeza implacavel; sem uma unica tergirversão de linha, sem um unico erro de calculo. O jesuita cae dentro dos seus proprios principios como na antiga tactica militar os generaes vencidos cahiam dentro do quadrado,—com todas, as baionetas voltadas para o inimigo.

N'esta maneira de acabar ha um ar de grandeza que nos obriga a nós outros, revolucionarios vencedores n'este momento historico, a tirar o chapeu e a saudar a coherencia dos vencidos.

Os estadistas da monarchia absoluta, com as suas leis, os seus exercitos e os seus principes, morrem feridos pelas suas proprias armas, morrem pela discordancia entre os fins propostos e os meios empregados, morrem por haverem abraçado, em vez da taboa de salvação em que fluctuariam, o trambolho de chumbo que os afunde.

As catastrophes assim determinadas pela insufficiencia intellectual n'uma classe dirigente, tornam a derrota comica e a ruina grotesca.

O historiador snr Henri Marlin pergunta:

«O que é que faltou á companhia de Jesus para que ella conseguisse realisar os seus planos dictados pelo genio?» E o mesmo historiador responde: «Faltou-lhe a rectidão, faltou-lhe a franqueza, faltou-lhe o espirito verdadeiramente religioso, o qual unicamente podia restituir á natureza os seus direitos sem attentar contra as leis eternas do bem e da verdade.»

O marquez de Pombal, expulsor dos jesuitas e successor d'elles, cahiu por modo mais ridiculo mas por eguaes causas. O que faltou no plano pombalino, concebido, como temos obrigação de o acreditar, no intuito do accelerar o progresso e a prosperidade da patria, foi a rectidão, foi a franqueza, foi esse espirito de abnegação e de magnanimidade que na egreja se chama religião e que na sociedade se chama a justiça.

A sociedade portugueza refeita á bordoada pelo despotismo pombalino offerece o aspecto servil e vergonhoso de um Paraguay burguez, incondicionalmente aforado a uma burocracia tarimbeira governada por um dos mais antipathicos mandões que ainda viu o mundo.

Solida natureza mesquinha mas atarracada, reforçada pelos quatro couros sobrepostos do merceeiro, do esbirro e do cabo d'esquadra, Sebastião de Carvalho—feliz nome onomatopico de que parece rever uma rigidez de cacete e uma espessura de baluarte—fez de Portugal á força de leis e de sentenças d'açoite, de sequestro, de prisão, de degredo e de morte, um paiz de seminaristas e de recrutas, subserviente, medroso, imbecil.

Viu-se o que essa sociedade miseravel tinha dentro logo que por morte do dictador ella se julgou desafrontada e começou a desabotoar-se ao sol.

O reinado de D. Maria I é todo a influencia pombalina virada com o dentro para fora e mostrando o miolo de que o reinado anterior fora a casca.

Nunca a moral, a arte, o gosto, os caracteres, os costumes attingiram um mais sordido rebaixamento. Levantaram-se as calumnias mais torpes contra o ministro demittido e desgraçado, e uma alluvião de escriptos em prosa e em verso, da mais chilra insipidez, inundou as salas da aristocracia e da burguesia aristocratisada, onde as senhoras merendavam e resavam a novena aninhadas no chão, esconjurando o ante-christo desterrado em Pombal, entre as graçolas dos padres e dos bobos, n'uma athmosphera toireira e beata, cheirando a insenso, a estrume de cavallo, a ureia de batina e a ovos molles.

O marquez não deixara um só homem de pulso, um unico amigo fiel e generoso que o deffendesse na adversidade. A monarchia a que elle submettera tudo, tornando-a absoluta, discricionaria e omnipotente, escorraçava-o e perseguia-o,—que é sempre assim que os reis pagam aos plebeus cuja força os assombra embora os mantenha e os sirva. O marquez de Pombal acabou como Colbert, o qual ao annunciarem-lhe, já moribundo, a visita de um enviado de Luiz XIV, recusou recebel-o exclamando: «Não me deixará esse homem acabar de morrer em paz? Se eu tivesse feito por Deus metade do que fiz por elle, estaria certo n'esta hora da salvação da minha alma, e assim não sei o que será de mim.»

O governo pombalino, pelo terror que conseguiu inspirar e por meio do qual dobrou ao arbitrio do seu programma todas as energias nacionaes, produsiu em ultimo resultado esta catastropbe enorme—a obediencia geral.

Toda a obediencia é uma diminuição de valor e de dignidade. Onde a liberdade existe não ha nunca obediencia, ha apenas accordo. A obediencia é dos fructos do despotismo o mais venenoso. O homem que obedece avilta-se; o povo que obedece deprava-se e dissolve-se.

Os individuos que por occasião do centenario do marquez de Pombal se encarregaram de encarecer os louvores d'este estadista, não cessaram um momento de nos explicar que os actos d'elle se não podem julgar com justiça pelas nossas ideias d'hoje, mas pelas ideias do seu tempo; e insistem n'isso de um modo proprio para fazer recear que, á força de procurarmos ideias antigas, tenhamos talvez, para ser justos, de julgar este personagem sem ideias nenhumas.

Se quizerem fazer o favor de nos conceder que Turgot foi um contemporaneo do marquez de Pombal—o que aliás a chronologia parece demonstrar com uma imparcialidade indiscutivel—nós permittir-nos-hemos contrapor algumas ideias do ministro de Luiz XVI ás do ministro de D. José, e o leitor julgará d'essa breve approximação de factos se o estado geral das ideias no fim do seculo XVIII é sufficiente para explicar o atraso das doutrinas economicas e dos principios moraes com que nos governou o marquez de Pombal.

Turgot não crê na acção das monarchias absolutas sobre a felicidade dos povos, e ao mesmo tempo em que Pombal eternisa pelo bronze da estatua equestre o despotismo de D. José, o ministro francez diz a Luiz XVI: La cause du mal, sire, vient de ce que votre nation n'a pas de constítution. Na mesma epoca em que o ministro de D. José mandava anullar por apocrypho o livro de Velasco de Gouveia, no qual se ennunciava o principio da soberania nacional, e exautorava o presidente do Desembargo do Paço, Ignacio Alvares da Silva, por que elle exposera a doutrina de que a lei civil em materias de casamento só podia ser alterada pelas côrtes da nação, Turgot instiga o herdeiro de Luiz o Grande, o Rei Sol, a reconhecer os direitos do povo firmando com elle o pacto constitucional.

Turgot punha acima da subserviencia dos thronos e da superstição dos altares a confiança no genio bemfazejo do homem. Foi n'essa convicção que elle escreveu sob um retrato de Franklin a epigraphe famosa, que sob o regimen pombalino o teria feito condemnar pelo Santo Officio ou pela Mesa Sensoria: Eripiut coelo flumen sceptrumque tyrannis.

A prosperidade nacional que Pombal procurou fundar no monopolio, na coerção e na tyrannia, procurou Turgot estabelecel-a na liberdade, creando as municipalidades, separando a egreja do estado, decretando a liberdade da terra, (1773), a liberdade, da industria e do commercio(1776), a liberdade da razão (1777).

Emquanto Pombal intentava cegamente firmar a monarchia absoluta nos excessos de rigor que deviam contribuir para a aniquilar mais depressa, Turgot previa pela tolerancia tudo quanto podia tornar progressiva a acção da realeza, poupando á humanidade os rios de sangue que ella havia de ter que derramar para chegar ao progresso apesar dos obstaculos que governos como o de Pombal lhe opposeram.

Condorcet, que já citamos, diz na sua biographia de Turgot; «As leis que prepararam as mudanças necessarias podem ser differentes para os differentes povos, porque são feitas contra abusos e contra abusões que não teem nem a mesma origem nem os mesmos effeitos; mas as leis que, em seguida a essas, estabelecem a ordem mais util á sociedade devem ser as mesmas, pois que devem ser fundadas sobre a natureza do homem.»

A differença capital entre o ministro de Luiz XVI e o de D. José é essa: que a politica d'um, fundando-se no poder absoluto dos reis, atrasava para muito tempo a liberdade do povo; a outra, fundando-se na natureza do homem, auxilia, quanto o póde auxilar um estadista, o progresso moral da humanidade.

Voltaire, aos oitenta annos de idade, no momento em que Paris o acclamava e o cobria de corôas no meio do maior triumpho de que ainda foi objecto um homem d'espirito, apeou-se em publico da sua carruagem forrada de setim asul e cravejada de estrellas d'ouro, e dirigindo-se a Turgot perdido na multidão, cahiu de joelhos banhado em lagrimas aos pés d'elle, e disse-lhe: Deixe-me ter a gloria de beijar a mão que assignou a salvação do povo.

A mão do marquez de Pombal, cheirando a sangue como a de Lady Mackbet, envenenaria os beiços que lhe tocassem. Por isso elle triumphante não teve nunca, como Turgot vencido pela intriga de Maria Antoinette, a consagração augusta do livre espirito da humanidade representado por Voltaire. Teve apenas as honras de um centenario contradictorio celebrado em nome da liberdade pelos representantes de todos aquelles que elle opprimiu em nome do despotismo: pela industria que paralysou deslocando-a da tradição historica e baseando-a em elementos exoticos e postiços; pelo commercio que entravou por meio dos monopolios; pela arte que abastardou tyrannisando-a pelo mais chato mau gosto; pela democracia que esmagou sob condemnações d'açoite, de carce, de deportação, de degredo e de morte; pela mocidade emfim, de cujas altas e desinteressadas aspirações elle foi a negação accintosa e brutal, porque o seu espirito d'odio, de cavilação e de mentira, era um espirito organicamente velho, mareado de nascença pelo vicio da senilidade ingenita.


Estamos cançados de ouvir dizer de todos os lados, por todos os oradores e por todos os articulistas da festa pombalina, que é absolutamente preciso, para nos pormos á altura de admirar com o devido respeito o vulto do marquez de Pombal, collocarmo-nos no devido ponto de vista. Em desconto dos erros que tenhamos commettido, cumpre-nos declarar, terminando, que ignoramos completamente qual é o tal ponto de vista em que é necessario que a gente se colloque.

Para escrever estas linhas nós collocamo-nos simplesmente n'uma cadeira, em frente do vulto e de um caderno de papel. Visto n'essa situação tranquilla, a olho desarmado e sereno, o unico effeito que nos fez o vulto, apparamentado com o seu calção e meia, a sua grande casaca de seda, as suas fivelas, a sua luneta e o seu rabicho, foi o de se parecer com o dos chéchés. E é o que francamente te communicamos, na honrada sinceridade de bom homem para bom homem, ó leitor amigo.

Emquanto á estatua do reformador, em que se falla como complemento do centenario a cuja celebração acabamos de assistir, ella seria, se a fizessem, o monumento funebre elevado á morte da democracia ou á do senso commum na sociedade portugueza. Mas não a farão nunca. E' já de mais a do Terreiro do Paço para consignar a estima d'este povo pelo charlatanismo dos seus tyrannos.

O rei D. José é absolutamente indigno de estar posto por meio de uma peanha não só acima do nivel mas á simples altura de qualquer cidadão honrado. Mero heroe das alcovas dos outros, esse principe rufião está abaixo do proprio Luiz XV, de apodrecida memoria. Luiz XV teve um merecimento pelo menos no seu reinado, teve por amante a encantadora amiga de Diderot, Madame de Pompadour, a cuja ligação o rei de França deveu a honra de poder cear algumas vezes em petit comité com alguns dos homens de espirito que escreveram a Encyclopedia. D. José nunca exerceu o seu donjuanismo senão entre beatas insipidas, mais pobres ainda de talento que de pudor.

Quando chegar a hora da justiça não é a estatua do marquez de Pombal que se ha de erigir, é a de D. José que se ha de apear. No monumento do Terreiro do Paço o unico que merece continuar a contemplar Cacilhas é o cavallo. Cumpre rehabilitar, na estima que se lhe deve, o nobre e util animal, desaffrontando-o do cavalleiro, que nunca prestou para nada n'este mundo, e honrando-o em nome do trabalho honesto com o appenso de uma charrua.

Lisboa 10 de junho de 1882.

Ramalho Ortigão.